Eu tinha uma turma de amigos e éramos considerados baderneiros (e olha que não éramos os piores da escola). Um dia à tarde, na casa de uma das meninas, pintamos, de brincadeira, os cabelos com papel crepom vermelho. Não preciso dizer que ficamos horrendas, mas foi uma farra. A bagunça resultou em uma suspensão para cada um de nós (3 meninas e um menino). Óbvio que levei a maior bronca em casa, mas depois vim a saber que a suspensão havia sido retirada do meu histórico escolar. Pois não é que meus pais foram ao colégio e disseram para a Coordenadora e para a Diretora que uma pintava o cabelo de loiro e a outra de preto (verdade) e que não havia em lugar nenhum dos documentos da escola a regra escrita de que alunos não poderiam pintar os cabelos (verdade também). Além disso, pintar os cabelos de farra aos 13 anos não fazia de nós revoltados, frequentadores de cemitérios ou adoradores da morte, conforme havia sido dito pela diretora da escola em um discurso para a nossa sala (Juro). Touché. A turma do fundão só disse “vixeeeeeeee”!
Mas meu pai era bastante rígido, bravo e ciumento comigo. Lembro, também no início da adolescência, dele reclamando quando eu queria ir ao cinema com algum menino, dizendo que eu tinha que entender que ele carregava “cinco mil anos de cultura árabe nos ombros”, referindo-se à sua ascendência Síria por parte de pai. Mas da mesma forma que era bravo, ciumento e controlador, saiu da Granja Viana, em Cotia, para me buscar em baladas em São Paulo no meio da madrugada em tantos sábados, para garantir que eu não perdesse a vida social e a diversão com os amigos do colégio e que voltasse em segurança para casa.
Mas a braveza do meu pai comigo também era justificada. O fato é que eu fui uma adolescente terrível. Dos 13 aos 17 anos, eu não mereci os pais maravilhosos que eu tive. E se teve uma coisa que fez meu pai rir após o diagnóstico de câncer, foi quando eu agradeci de verdade, emocionada e de coração, por ele ter me aguentado e não ter me dado para alguém ou me mandado para um internato, porque se eu fosse meus pais, eu teria.
Pelo contrário, mesmo com todas as discussões e desentendimentos, ele sempre foi uma rocha de apoio. Quando fui estudar em fora, aos 17 anos, eu não tinha ideia de como funcionava email, nem sei se já existia Skype e essas novas tecnologias. Eu tinha que ligar a cobrar para casa para falar com meus pais. Eu morria de saudades e todos os dias de manhã quando eu chegava na escola, tinha mensagens de fax do meu pai no mural da secretaria. Um colega da Alemanha um dia me disse que gostaria que o pai dele tivesse por ele o mesmo carinho que meu pai tinha por mim. O tempo todo em que fiquei lá, o rapaz nunca recebeu nenhuma mensagem do pai. Os fax do meu pai vinham com piadas e desenhos de gatinhas, porque era assim que meu pai me chamava.
Meu pai também cobrava bastante. Cobrava boas notas, bom desempenho escolar. Falava que esse era o nosso trabalho. Lembro quando estava na faculdade de Biologia e eu estava fazendo um estágio de iniciação científica em um Laboratório do qual eu gostava bastante do trabalho, mas eu tinha muitos problemas com a professora orientadora e com uma aluna de mestrado. Eu havia sido contemplada com uma bolsa de pesquisa que tinha duração de um ano e aos seis meses de bolsa a situação de convivência havia se tornado insustentável para mim. Fui conversar com meu pai pois eu queria abandonar o estágio, a bolsa e o projeto, já que para mim estava sendo infernal e eu chegava chorando em casa diariamente. Ao invés de me consolar e dizer que a filhinha podia fazer o que quisesse, meu pai falou muito sério que não havia me criado para desistir das coisas pela metade e que eu ia encarar o desafio e terminar o ano de pesquisa. Aquilo foi a morte para mim. Eu não conseguia conceber voltar naquele lugar. E no entanto eu voltei, enfrentei, aguentei, terminei e saí fortalecida desse processo. Não tivesse sido a força e o empurrão do meu pai, eu teria largado.
Mas apesar desse episódio, o Neil sempre apoiou de forma incondicional todas as minhas escolhas profissionais. Mesmo quando não pareciam as melhores. Mesmo quando parecia que tudo e todos estavam contra. Mesmo quando foi difícil e solitário, ele estava ao meu lado me incentivando. E quando eu comecei a colher os frutos da minha formação, ele sempre foi o meu maior fã e apoiador. E o apoio vinha das mais variadas formas… às vezes era me ouvir chorar e xingar contando sobre algum colega ou professor que tinha se comportado de maneira que eu não achava legal, às vezes era ir ao “escritório” de casa às 2 da manhã para mandar que eu parasse de escrever minha tese de doutorado e fosse dormir, às vezes era achar a maior graça (e dar nomes) no cuidado que eu tinha a cada duas horas com três filhotes de uma gambá que morreu atropelada na rua de casa e que eu peguei para cuidar até crescerem fortes e tomarem os rumos das suas vidinhas…. Às vezes era cuidar com todo amor e carinho do mundo do Lorde Chicão, meu coração em forma de anjo peludo, o melhor cachorro do mundo, que eu peguei da rua a contragosto de todo mundo e que ganhou o coração do meu pai. O Neil cuidava do Chicão para que eu pudesse voar, fosse para fazer trabalho de campo, fosse para ir às conferências TED como primeira TED Fellow e Senior Fellow brasileira, fosse para viajar para Manaus encontrar o dono do meu coração, que morou lá por quase cinco anos.
Lembro da primeira vez que meu pai viu meu namorado, meu marido hoje. Naquele dia se referiu a ele como “aquele cara”, com uma expressão de pouquíssimos amigos. Mas pudera, ele mal conhecia “o cara” que já tinha viajado três vezes com a filhinha dele. Mas o namorado que conquistou meu coração, não conquistou à toa. Ele era (e ainda é) simplesmente a melhor pessoa do mundo. E cá, entre nós, acho que se meu pai pudesse ter escolhido um companheiro de vida para mim, teria sido exatamente ele. Os anos mostraram ao meu pai a pessoa maravilhosa que o meu marido é. E como naquele velho clichê, meu pai não perdeu uma filha, ganhou um filho. Um baita filhão. Calmo, tranquilo, seguro, carinhoso. Que esteve firme, forte e presente quando todos nós precisávamos. Que passou noites com meu pai no hospital e que foi a minha fortaleza quando eu desmoronei. Que se despediu do meu pai ao som de um lindo clipe com os melhores momentos do São Paulo, que eu sei que meu pai adoraria (vai ver que adorou…). E que junto comigo deu ao Neil a quarta netinha, a Marina, que era muito amiga dele e sem dúvida foi uma fonte de grande alegria e amor para ele nos últimos anos de sua vida. A Marina, com sua doçura de menininha de dois, três anos, desmontava meu pai quando achava o tupperware em que ele escondia com biscoitos na sala de tv, sentava ao lado dele, abria, oferecia para ele e ficavam os dois lá, sentadinhos e cúmplices comendo os biscoitos… E a Marina fez algo que eu nunca imaginei ser possível. Juro que ela fez meu pai dançar Ciranda Cirandinha. E foi a coisa mais engraçada, bonitinha e terna que eu já vi. Foi a Marina que me mostrou o tamanho do amor que é possível sentir por um filho e que me fez entender e valorizar tantas coisas que meu pai fez ou falou ao longo da minha vida.
Meu pai não era nada, nada, nada fácil. Era uma montanha-russa de emoções. Às vezes era briguento, quase sempre super cabeça dura. Era genioso e temperamental. E estourado. Mas também era amoroso, cuidadoso, interessante, inteligentíssimo, presente, apoiador, provedor, engraçado. Meu pai podia ser tudo, mas nunca foi entediante. E nunca passou em branco pela vida. Sua presença sempre foi marcante, fosse pelo bem ou pelo mal, quando era a criatura mais adorável do mundo, ou quando provocava a todos com comentários controversos sobre política e futebol, só para “causar”, afinal, ele levava futebol tão a sério quanto levava política. Ou será que era ao contrário?!
Eu sinto falta do meu pai quando tenho decisões para tomar, sucessos para comemorar, gracinhas da Marina para contar, tristezas para chorar. Eu sinto falta do meu pai para rir do nosso medo mútuo de avião. Eu sinto falta do meu pai fazendo enormes saladas com verduras, legumes e frutas para que eu jantasse bem, após um dia de trabalho e uma noite de treino forte de natação. Eu sinto falta do meu pai confabulando comigo, tirando onda da cara da minha mãe, fingindo que esqueceu o aniversário dela (todo ano, todo santo ano. E nunca perdia a graça). Eu sinto muita falta de ir com meu pai e com o Lorde Chicão caminhar de manhã cedo, quando ainda estava fresquinho, no parque Cemucam e admirar as lindas flores, o ar puro, a beleza do lugar e a consciência de felicidade plena. Eu tenho tantas memórias legais, interessantes, engraçadas, que sinto que eu poderia encher centenas de páginas e ainda não teria contado tudo que eu queria contar.
Eu sou formada em Biologia e sempre encarei o “ciclo da vida” com muita naturalidade… Flertei com uma corrente do Budismo durante a adolescência e me lembro da importância dos ciclos de de morte e renascimento para a evolução pessoal. Com meus queridos professores de Yôga aprendi sobre nossa unidade com o Universo. Acompanhei a saúde do meu pai se deteriorar e ainda é vívida a sensação cortante de que ele merecia descansar, já que aquela vida estava ruim demais para ele. Sempre achei que eu encararia a morte, ainda mais quando é um descanso, com muito mais naturalidade. Mas a realidade é que a dor da saudade queima. Sinto falta do meu pai todos os dias. Sei que a vida não estava boa para ele, mas a falta que ele faz aqui enevoa minha racionalidade. Mudei com a sua doença e a sua morte. Mudei ao ver meu pai, que sempre cuidou de tudo e resolveu tudo, precisando de cuidado e auxílio. Sei que todo mundo passa por isso e não me sinto em nada especial, mas mudei com a sua perda. Sinto a força dele em mim, mas sinto o desamparo da saudade do meu paizão, meu suporte, minha proteção, meu amigão. Às vezes chato, às vezes inadequado, quase sempre difícil, mas sempre meu paizão.
Juliana Machado Ferreira