Neil Ferreira, provocador
Neil e eu fomos grandes amigos por décadas, ou porque trabalhávamos juntos ou porque ele namorava minha irmã, Sonia Maria, por nove anos. Neste tempo acumularam-se muitas histórias.
Neil era um jovem de estatura mediana, muito magro, de pele azeitonada com olhos castanhos e cabelos despenteados, que não se vestia com muito apuro. Seu nome verdadeiro era Neil Haddad, mas ele nunca falou nada sobre seus pais e sua infância na cidade de Cerqueira Cesar, perto de Avaré. “Haddad” em árabe significa “ferreiro” e muitos imigrantes com esse sobrenome aportuguesaram-no para “Ferreira”.
Apesar de ser conhecido como socialista empedernido, desfilou por algum tempo pelas ruas de São Paulo dentro de um Moretti, um carro conversível vermelho de fabricação italiana.
Panfletário, mas nunca pertenceu a nenhum partido político.
Sabia chamar a atenção. Estava sempre sorrindo, era cheio de alegria e muito agitado. Pão duro como ninguém. Por anos almoçou na casa de minha mãe diariamente, na rua Eça de Queiroz, sob a desculpa de fazer economia para comprar um apartamento que estava em construção na Alameda Casa Branca – apartamento que nunca comprou. Mas minha mãe adorava ter a mesa cheia de amigos dos filhos, então Neil era sempre bem recebido.
Era ao mesmo tempo um chato e um provocador, a tal ponto que se tornava divertido e simpático com quem conversava.
Em meados dos anos 1960 eu trabalhava na Standard Propaganda, que ocupava um prédio inteiro na praça Roosevelt, o coração da elegância paulistana. A sede da agência era no Rio de Janeiro. Foi uma época gloriosa.
Pela agência circulavam Said Farhat, Júlio Cosi Jr., Milton Luz, Licinio Neves Tavares de Almeida, um diretor de arte português muito culto e elegante.
Naquele tempo ainda não havia televisão colorida e nem os recursos técnicos para fazer comerciais gravados, então a publicidade era principalmente veiculada em jornais, revistas, nas emissoras de rádios, em outdoors e em cartazes.
O principal cliente da Standard era a Shell, que imprimia suas peças publicitárias numa oficina de cartazes de cinema, em Madureira, no Rio. Um belo dia, por mero acaso, o diretor da Standard, Cícero Leuenroth, descobriu esta oficina e o contrato que ela tinha com a Shell. Resultado: comprou a oficina e ficou com a conta da Shell. Golpes de sorte como este aconteciam.
Naquele tempo o jeans não era usado no Brasil; era tido como roupa de agricultor americano – e ninguém queria parecer gringo por aqui: o sentimento anti-americano era muito forte. Mas Hans Berg que era o principal comprador de produtos da Sears Roebuck, convenceu a Alpargatas a confeccionar calças de brim azul que foram apelidadas de calças Rancheiro.
Os trabalhadores rurais brasileiros só usavam calça de tecido branco de algodão para poder remover os carrapichos que se agarravam ao tecido, portanto a cor azul não era propicia a essa limpeza. Para promover as calças Rancheiro, o sr. Berg contratou um ídolo do cinema americano, Roy Rogers, que desembarcou no Brasil com seu cavalo branco, para um show no Pacaembu. Esperava-se umas 5 mil pessoas – mas, surpresa! – o estádio ficou completamente lotado em seus 60 mil lugares. (Provavelmente o primeiro grande show em estádio realizado no Brasil), e conseguiu a proeza de tornar a calça rancheiro uma moda entre os jovens urbanos.
A Standard Propaganda também tinha a conta da Rhodia, fabricante de fios sintéticos, que não dispunha de dinheiro para publicidade. Os fios sintéticos eram vendidos para as tecelagens como uma alternativa mais barata aos fios naturais.. Seu único anúncio trazia a ilustração de um fio e o título criado por Ernâni Donato, “O fio de Ariadne”, sem fazer referência a roupas e tecidos.
Como a Rhodia era um cliente sem dinheiro, o diretor da Standard em São Paulo, Said Farhat, mandou o gerente de propaganda da Rhodia, um jovem ator de teatro infantil chamado Lívio Rangan, ser atendido pelo gerente de departamento de outdoor, Renato Rosa. Como Renato não entendia nada de propaganda, veio me procurar com um pedido de socorro. Até ali, nenhuma propaganda da Rhodia havia sequer sugerido que seus fios serviam para fazer tecidos e, portanto, roupas. Então a ideia era convencer Dener, o estilista mais badalado do país, a confeccionar modelos com os tecidos feitos com os fios sintéticos da Rhodia. Dener desprezou os tecidos, mas topou o desafio – mesmo com pouco cachê na jogada.
Mas antes disso tínhamos de convencer algumas tecelagens a confeccionar tecidos estampados. O pai do Guilherme Afif Domingos ensinava, “Fabricar tecido branco é ouro; fabricar tecido colorido é prata; fabricar tecido estampado é merda”.
Lembro-me até hoje da entrevista que fiz com Denner em seu atelier na Avenida Paulista.
As roupas ficaram maravilhosas, buscamos quatro manequins belíssimas e contratamos o fotógrafo Otto Stupakoff, um verdadeiro artista, para registrar as moças vestidas com roupas com a marca de Dener associada à da Rhodia. Pensávamos, então, em publicar as fotos em jornais, como press release, mas o grupo Manchete estava chegando em São Paulo e quando Roberto Vasconcelos, o gerente carioca da revista, viu as fotos não pensou duas vezes: fez com que elas fossem publicadas em cinco páginas de uma de suas publicações.
A partir daí foi só alegria.
Tivemos a idéia de criar coleções e fotografá-las em paisagens brasileiras, Rio, Ouro Preto, cataratas do Iguaçu. Promovemos desfiles no Brasil e no exterior. Participamos da primeira Fenit (Feira Nacional da Indústria Textil) no Ibirapuera – onde, houve um show de uma garotinha que tocava violão com a turma perto de casa da rua Eça de Queiroz, na Vila Mariana… Rita Lee, lindinha, que fez o maior sucesso.
Bem, mas o trabalho para a Rhodia estava se tornando mais e mais pesado, e eu pensei em contratar um redator. Minha primeira opção foi convidar Jorge Ferreira, jornalista respeitado dos Diários Associados. Mas ele não se interessou em ingressar no mundo da publicidade. Sugeriu o nome de seu sobrinho, que recém ingressara nos Diários vindo de Cerqueira César – Neil Ferreira. Assim, Neil foi contratado como redator da Standard e milagrosamente deu-se muito bem com o Lívio Rangan. A partir de então acompanhou todas as peripécias que fizemos para difundir a marca no país.
Com o tempo, também Clodovil, que iniciava sua carreira de estilista, passou a produzir peças de roupas femininas feitas com fios sintéticos da Rhodia. Stupakoff, dono de um talento fora do comum e de um bom gosto excepcional, fotografou nossas modelos em Ouro Preto, posando em cima dos telhados. Depois em Foz do Iguaçu. E a coisa foi num crescendo tamanho que chegamos a alugar uma casa na Avenida Brasil onde oferecíamos cursos para estilistas. Nossas manequins foram o primeiro grupo reconhecido como modelos profissionais no país. E a Rhodia passou a ser conhecida e associada a roupa de qualidade.
Roberto Duailibi
Tínhamos um diretor de arte talentosíssimo, o português Licínio Neves Tavares de Almeida, pessoa de fino humor, que provocava a mim e a Neil quando passávamos por ele. Puxava uma espada imaginária e bradava o mote dos portugueses contra os mouros no século VIII: “Por Santiago e Rei Afonso!”. Ao que nós respondíamos: “Allahu Akbar!”,, cujo significado é “Deus é o maior”.
Uma vez recebemos um empresário que nos dizia já ter tentado o ramo do cimento, mas não ter ido bem; ter comprado uma tecelagem que não vingou, pois ele não entendia nada do negócio; depois ter experimentado uma fazenda para criação de gado leiteiro, que foi a bancarrota por causa de uma doença que atingiu os animais. Neil escutava com atenção. Quando o cliente se calou, Neil atacou: “Além de perder dinheiro, o que mais vocês sabem fazer?”.
Em março de 1964, quando houve a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, subimos os primeiros degraus de um prédio na Rua Sete de Abril para assistir à parada. Quando passava um grupo de meninas arrumadinhas, guiadas pelas freiras do Colégio Sion, Neil não perdeu a oportunidade: “Ei meninas! Eu sou comunista! Venham me converter, eu sou comunista!” ele gritava pra horror das freiras.
Em 1 de abril de 1964, um grupo de partidários de Leonel Brizola estava na praça Roosevelt afim de protestar contra o golpe. A rádio “Rede da Legalidade” bradava que havia ali uma multidão revoltosa. (Devia ter umas 30 pessoas). A Standard ficava exatamente na praça, então chegamos à janela para ver o que acontecia – e vimos meia dúzia de gatos pingados que nem barulho faziam. Neil não perdeu tempo: ligou para a rádio de Brizola, a Rede da Legalidade, que fora formada nos porões do Palácio Piratini, no Rio Grande do Sul, e aconselhou: “Mandem mais 10 gaúchos para engrossar o protesto porque a coisa aqui está fraca”.
Certa feita contratamos na Standard um redator um pouco mais velho do que nós, e muito famoso, Sergio Toni. Tinha uma voz tonitroante e era conhecido por saber vender bem suas campanhas. Ganhou imediatamente uma sala. Devido ao volume de trabalho, estávamos acostumados com agilidade: eu e Neil recebíamos um envelope com uma demanda de campanha, um prazo apertado para entregar os textos e logo entregávamos o serviço. Toni recebeu seu primeiro pedido de campanha e trancou-se em sua sala. Passou uma semana e a agência toda na expectativa “O Sérgio está pensando”. “Vem coisa boa aí”. Duas semanas depois ele entrega o texto – com um pequeno erro de português no título. Neil, com a melhor das boas intenções, apontou a falha. Sergio Toni ficou indignado. Com seu vozeirão, gritava “Meu nome é Sérgio Toni! Sér-gio To-ni”! “Como um caipirinha de Cerqueira César ousa corrigir Sergio Toni?”. Pediu demissão imediatamente. O caipirinha de Cerqueira Cesar ficou encarregado de terminar o serviço.
Houve outra passagem inesquecível que aconteceu quando já estávamos na DPZ. Estávamos solicitando a conta do uma famosa marca de hamburguer, que tinha uma filial ao lado do Mackenzie. Marcamos uma reunião com o cliente, um americano simpático, veterano de guerra com o braço esquerdo amputado. Ele era também o CEO das rações Purina. Esperávamos o gerente de propaganda do Rio de Janeiro, Juan Vicente. Na época eu criava cães da raça doberman, e enquanto esperávamos o Juan conversávamos sobre alimentação animal. Juan chegou atrasado com a desculpa de que estava almoçando numa das filiais da casa de hambúrguer do cliente. Neil disse com a maior naturalidade: “Nós aqui falando de comida de cachorro e você comendo comida de cachorro!”
Ele era provocador assim, e tinha manias. Uma época, por exemplo, resolveu virar macrobiótico – e nos almoços, a cada garfada, mastigava 40 vezes. Ninguém aguentava ver aquilo. Um almoço demorava duas horas.
Na DPZ Neil fazia parceria com Zaragoza e os dois se davam muito bem. Mas um dia se desentenderam e Neil, indignado, pediu demissão. Então Zaragoza fez publicar nos jornais uma nota: “Neil, queridinho! Volte pra casa. Tudo está perdoado.” Neil voltou.
Quem não gostou foi o Washington Olivetto e o Petit, que viam no Neil um rival talentoso e sarcástico. Pouca gente sabe que essa era uma característica da DPZ: cada andar tinha uma dupla: no quinto, Petit e Washington; no sexto, Zaragoza e Neil; no sétimo, eu e o Murilo Felisberto. O Neil dizia que quando um andar perdia uma conta, o cliente não saia porque era atendido por uma das outras “agencias”. E assim chegamos a ser a maior agência do Brasil. De cada andar sairam grandes idéias. Do Neil podemos falar ainda da Morte do Orelhão (para a Telesp), do Baixinho da Kaiser, do menino passando a mão sobre o presunto Sadia. Cada uma dessas campanhas merece uma história à parte.
E cada andar, se tivesse uma boa idéia para um cliente de outro andar, sentia-se livre para apresentá-la. Apesar das rivalidades, havia respeito mútuo.
Nessa época sai dali uma oportunidade provocadora. O cliente era o governo Figueiredo, mais exatamente a Receita Federal, que precisava divulgar o Imposto de Renda como algo sério para a população. Para provocar o governo, Neil apareceu com a idéia do leão, uma proposta apresentada como denúncia, ou como ameaça, para ser recusada.
Como eu concordava com a tese, fiquei, como sempre, de apresentar para o cliente, já sabendo que a idéia seria recusada. Mas milagres acontecem. Apresentei a campanha para o gerente de comunicação da Receita, Claudio Borges, que era muito amigo meu e ex-aluno da ESPM, onde nos conhecemos. Surpreendentemente, ele aprovou. Fomos apresentar a campanha para Francisco Dornelles, secretário da Receita, que, para minha surpresa, aprovou também. Finalmente para o Ministro Karlos Rischbieter, ministro da Fazenda do governo João Figueiredo, que gostou da ideia.
O que era para ser uma denúncia se transformou num símbolo. Na época eu atribui esss aprovações ao fato de que Claudio Borges, Francisco Dornelles e Karlos Richbieter eram carecas e a juba do leão era para eles uma compensação.
Aí começa uma epopéia. O produtor Andrés Buscovinsky foi buscar um leão velho de circo para filmar o anúncio – com a equipe de filmagem numa jaula, enquanto o leão e o domador ficaram livres no picadeiro pela primeira vez. O domador morria de medo.
Sugeri que a equipe de filmagem, Neil principalmente, ficasse presa para sempre na jaula.
A campanha foi um sucesso e os circos do país passaram a anunciar que tinham em seu elenco o Leão do Imposto de Renda – personagem que durou muito tempo, querido e ao mesmo tempo temido por todos, criação de Neil, o comunista.
Roberto Duailibi
Publicitário, escritor, membro da Academia Paulista de Letras