Quando a família mudou para uma cidade pequena, minha mãe concordou que eu deveria continuar em Sorocaba, uma cidade grande. Mães sabem o que é melhor para os filhos. Lá tinha um jornal e uma emissora de rádio que eram verdadeiras escolas profissionais. E eu já trabalhava nos dois lugares desde moleque.
Assim, aos 16 anos, instalado num hotel dos anos 50 com minha Olivetti Lettera 35, penas, gouaches e acrílicos, comecei a gastar o que mais tinha na vida, varando noites a escrever roteiros e desenhar quadrinhos.
Uma manhã na redação de O Cruzeiro do Sul, soube que os futuros criativos de sucesso continuariam vindo de cidades do interior, como Sorocaba,”onde os meninos têm mais tempo para ler.” Era Duailibi prevendo os anos 70 para a criação na edição da década da revista Propaganda. Então, a coisa era comigo?
Fiquei ligado. Logo descobri o Neil Ferreira. Os anos 70 seriam dele. E nossos, os cabeludos. Era só um pouco mais velho do que eu. Mas era muito mais cabeludo. Gostava do Bob Dylan. Dos Beatles. Dos Rolling Stones. Era de Cerqueira César, ali perto de Tietê, Maristela, Laranjal.
Rapidinho cheguei ao anúncio “Ou Dá ou Desce”. Certo, mano, então é isso. Logo depois vi a página dupla “Os Subversivos”. Entendi tudo. A coisa era mesmo comigo.
Dei um jeito de mostrar textos e desenhos para o Neil na Norton. Não me pergunte como passei pela Bianca!! Neil olhava para textos e desenhos sem piscar, com o cotovelo na mesa e o queixo apoiado na mão. Não lia. Fuzilava textos e imagens. Falou que não tinha gostado de nada, mas tinha gostado de mim, ele tinha ido com a minha cara. E fez a proposta dando uma risadinha sarcástica: uma noite dos desesperados que duraria três meses.
Peguei o bonde que ele montou com uma centena de estagiários lotados numa grande sala no penultimo andar do prédio da Norton. Todos recebiam jobs e a cada três dias eram avaliados de manhã pelo próprio Neil. Ele investia uma energia desproporcional comentando o que você tivesse criado, dando dicas, tendo ideias ou dando porrada.
Duas semanas só de porrada e você era dispensado; duas semanas de ideias que faziam ele parar de fuzilar o papel, você passava para a proxima fase um andar abaixo.

Hermes Ursini
Assim, Neil nos guiou, um pequenos grupo de jovens duros e idealistas, alguns em trench coats comprados nos brechós do centro da cidade, como uma pequena manada até a Canaã prometida.
Chegamos empoeirados na Criação da Norton toda branquinha, Liber Matteucci, Isabel Azevedo, Ricardo Guimarães, eu, e lá já estavam Dodi Taterka, Kélio Rodrigues; no estúdio a Cristina Silva, o Marcinho e o Fabio. E todos os astros pisavam o carpete de lã distraídos: Wagner Morais, Fontoura, Jarbas, Helga Miethke, Magy, Marcius Cortez, Bá Galvão. Tudo o que Neil prometeu, ele cumpriu. Aprendemos com os melhores.
A fazer propaganda da melhor qualidade e a ligar e abastecer o motor que nos alimentou por toda a vida como criadores.
Neil nos deu tudo isso, o meio-ambiente que ele havia criado, e crescemos ali como plantas fortes e promissoras. Eramos tão ligados que quando ele empacava numa frase eu sabia quais eram as palavras que ele estava procurando e dizia. Você entende o que isso significa. Todos nos tornamos à nossa maneira um Neil. Isso levei comigo por toda a vida profissional. Eu olhei tanto para o Neil que achava que tinha aprendido como ele pensava.
Quando tudo acabou e todos já tinham se mandado da Norton, lembro de nós que restamos, eu, Ricardo e Magy numa manhã triste, mandando uma mensagem para o Neil, com uma verdadezinha raivosa de cachorro abandonado. Ele estava exilado na Proeme e repondeu rápido:
“Eu ainda gosto de vocês”.
Eu ainda gosto do Neil.

Eu me lembro dessa entrevista do Neil para o Nosso Jornal, feito por estudantes de jornalismo da FAAP que eu ajudava em algumas edições. Era a entrevista do mês, um pinga fogo estilo Pasquim, e eu estava lá. Do lado dos caras, na casa de uma das estudantes, depois do expediente.
Quando chegou e me viu no meio dos caras, Neil ficou arisco: – “O que você está fazendo aqui, Midi, do lado do inimigo?” Ele me chamava de Midi e ria sarcástico. Midi, de Midinight Cowboy, o filme dos anos 70. Ele sabia pelo Fontoura que eu aparecia toda meia noite no Bar Branco, lá no Bixiga. Por isso, no dia seguinte chegava atrasado na agência. O que acabou me custando uma demissão sumária. Ele me demitiu de manhã , eu montei campana na porta da Confeitaria Little e ele me recontratou ao voltar do almoço. Ficava mais calmo quando comia no Arroz de Ouro ali no Largo do Arouche.
A entrevista? Foi ótimo ver o Neil disparando sem parar; aos 28 anos, ele era imbatível. O Fontoura dizia que Neil “falava títulos”: -“Quando ele começa, ligue o gravador que você já tem a campanha pronta”.
Olhando a cena do meu chefe no meio da fumaceira de caras poucos anos anos mais novos, e tomado pelo entusiasmo,”vi”a ideia de uma Lettera 35 disparando em várias direções.
Fiz a ilustração com varios lápis B7, Koh-I-noor fantásticos, cedidos pelo querido Giba, chefe de estúdio da Norton e senhor do mais belo estoque de materiais de arte do mercado.
Não via essa arte há séculos.
Hermes Ursini
Redator e Diretor de Arte, trabalhou na Norton, na Thompson e na Ogilvy, no Brasil.
Fundou seu studio creatif em Paris entre os 70 e 80, Sillage Création, e de volta ao Brasil, sua agência, Light Criação. É roteirista, desenhista de quadrinhos e ilustrador.
Recentemente publicou a graphic novel BANDO, o livro Plural como o Universo- Fernando Pessoa para adolescentes, com Lara Prado, A Grande IIusão, com Fernando Emediato, o infantil Cabeça Cheia e o erótico Dedos Levianos, com Gilce Velasco.
Em 2025 lança a graphic novel Meu Hino e uma obra de 800 páginas, de Ricardo Prado, sobre os primeiro criadores do Brasil, surgidos nos anos 1800.