“A arte de escrever é o ofício de reescrever.”
08 de abril de 2024
Era assim que Neil se referia a busca da perfeição da palavra correta, do slogan perfeito, da síntese de uma ideia. Se poderia servir como mantra para sua brilhante carreira de redator, não cabe aqui neste texto. A nossa convivência de 25 anos não tem espaço para copidesque. Diria até que nem para vírgulas. Sentia uma urgência tão grande em absorver tudo que vinha dele que não podia me dar esse luxo de soltar o ar e perder alguma coisa. E, claro, em nenhum momento haverá um ponto final que nem sua morte trouxe.
Eu brincava que iria escrever um livro visto que enquanto ele perseguia a síntese, eu me debruçava em dissertações, reflexões, longos parágrafos para dar conta da avalanche de conhecimento que me passava. O resultado aparece, hoje, no meu senso crítico, na minha curiosidade, na minha incessante vontade de aprender.
Suas palavras eram mais que instrumentos de seu trabalho. Tão pouco vinham só de livros, filmes e exposições que devorava. Elas se formavam dentro de uma alma rica e benevolente e se espalhavam por aí. Serviam tanto para vender cigarros, como para incentivar votos. Para lançar um modelo de carro, como para descrever o seu jardim.
Muitas vezes, devido a nossa diferença de idade, dizia que poderia ser meu pai. Ele foi Pai dos sortudos José Bento e Juliana. Para mim, foi um farol. Quando sua luz chegava, era um banho de conhecimento.
A lealdade e respeito pelo outro foi a base desta amizade perfeita. Não era uma relação de mestre e aprendiz. Sua humildade, não lhe permitia exageros. Um dos maiores publicitários do país buscava mais o diálogo do que a retórica. Preferia andar nas ruas, do que viver no pedestal. Comer balas de jujuba do que dividir uma mesa no La Tambouille, algo frequente na nossa rotina.
O engraçado é que pela primeira vez que nos encontramos pessoalmente foi em um restaurante vegano. Não me recordo o nome, mas o endereço, sim. Na Cônego Eugênio Leite entre a Pinheiros e a Rebouças. Pensa em uma pessoa que não come uma folha, com eu, querendo impressionar e fazer jus a essa oportunidade única. Pois, foi assim a vida toda. Me fazia experimentar, ler, assistir, ouvir músicas que não estavam minimamente no meu radar e que hoje, pilares do meu repertório.
Conheci Neil durante a realização do Jogos Olímpicos, em 1992, em Barcelona. Ainda uma jornalista iniciante, na Rádio Eldorado, tinha como tarefa matinal de fazer a conexão para que ele entrasse no ar e comentasse as provas com um olhar “diferente” de um comentarista esportivo. Antes de sua participação tinha um rápido bom dia com a discussão do tema para que eu pudesseavisar os apresentadores. E depois, quando o jornal acabava, tínhamos, aí, sim, um bate-papo sobre o que havia sido dito, os fatos do dia, e a campanha que estava trabalhando.
Geralmente, deixava os filhos na escola e seguia para o escritório da DPZ, onde trabalhava, na Cidade Jardim. Era um longo caminho da sua casa na Granja Viana onde preferia viver como refúgio ao redor de livros, música e da natureza. Era um homem que se completava em duplas, com sua mulher Eliana, com os dois filhos, com o parceiro de obras-primas, Zaragoza, com o amigo Rabino, comigo. Desde forma, a conexão se tornava mais genuína.
Por anos, depois, já com celular, conversávamos durante a sua caminhada diária. O super publicitário e a pretensiosa jornalista no ritual diário de trocar palavras e impressões. Ele me jogava um haicai e, eu, saia transformando aquilo em praticamente uma bíblia. Uma jovem da periferia de São Paulo que ganhou um prêmio de loteria de intelectualidade e cultura.
Regiane Bochichi
Neil não me explicava o mundo. Ele me abria os caminhos. Nada era raso. Nem as dicas de viagem. Para Paris, que comecei a ir com frequência por sua influência, indicava desde o sabor do sorvete que deveria experimentar na Berthillon, Île Saint Louis, passando pelos trajetos,minuciosamente, detalhados por quais ruas deveria percorrer o Marais e até um quadro específico do Museu d’Orsay: Olympia, de Manet. Só que não era, simplesmente, ir lá ver o quadro que havia chocado Paris por causa da nudez frontal da modelo retratada. Antes, me sugeriu que lesse o livro de Otto Friedrich, que não só falava sobre a obra, mas contextualizava sobre a efervescência da Cidade Luz daquela época. Daí em diante, cada vez que voltei ao d’Orsay, considerei uma visita aos meus “amigos” impressionistas. Entrei para a “turma” que ele me apresentou.
Guardo com carinho tudo que esta amizade me proporcionou. Me contava sobre Woodstock. Tivemos um “gostinho” deste festival histórico e emocionante, ao assistirmos Bob Dylan e osStones, no Ibirapuera em 2012.
Lembro do orgulho quando José Bento, ganhou um concurso de poesia e recebeu o prêmio no Centro Cultural SP. Quando a Juliana entrou na faculdade, o jornal recebia antes a lista dos aprovados. E fui lá atrás dos editores do Estadão para procurar seu nome e dar a notícia em primeira mão. Andava pelas ruas de SP e reconhecia outdoors de campanhas suas.
Neil me faz falta. Suas análises, seu companheirismo, seu brilhantismo. Tenho curiosidade em saber como reagiria ao cancelamento de Monteiro Lobato que fez dele um leitor contumaz. Mas era um homem sábio e, compreenderia o zeitgeist do que estamos vivendo hoje, onde ao mesmo tempo a intolerância abocanhou metade do país e outra parte que quer se livrar da misoginia, do racismo, da homofobia, da xenofobia e tantos outros preconceitos. Seu apreço pela liberdade, de entender “a dor e a delícia de ser o que é”, funcionava como uma bússola em busca da sensatez e do bom senso. Hoje, ele seria um genial criador de memes J
No casamento de sua filha, celebrado pela Monja Coen em uma manhã de sábado, fui com meu marido, Fortunato, que entendeu imediatamente a conexão que existia entre mim e aquela família.
Quando a doença chegou, Juliana me ligou e imediatamente, fui a São Paulo. Dali, foram algumas outras tantas visitas que fiz ora sozinha, ora com Nato, que me acompanhava em mais uma jornada de ver um câncer consumir pessoas especiais, como aconteceu com meus pais.
Dias antes de morrer tive com ele alguns minutos para o que sabíamos seria uma “despedida”. Nenhuma palavra foi dita. Seguramos as nossas mãos em silêncio, com a certeza, de que aquele laço jamais seria desfeito.
Regiane Bochichi
Jornalista