retirado do blog de José Nêumanne –
Direto ao assunto

Um cometa no abismo

Neil Ferreira nos priva de um convívio inteligente e feliz, mas fica seu brilho que ilumina

Por José Neumanne
07/11/2017 | 18h25
 
Neil Ferreira era um gênio. Ninguém precisa ser um redator de escol nem um publicitário de primeira linha para ter autoridade suficiente para fazer uma sentença tão exagerada e tão decisiva quanto esta. Bastava ser um cidadão comum, um Zé Mané qualquer, um humilde, mas imodesto filho de Deus, como o autor destas linhas de despedida e elogios, para saber que essa frase não é apenas definidora, mas também definitiva. O que dizer do redator premiadíssimo no Brasil e no exterior por seus textos originais, simples e elegantes? Talvez o máximo de sua obra seja o leão que nas suas mãos virou símbolo do Imposto de Renda. Há no rei dos animais uma identificação com a atividade que desde então ele passou a simbolizar que o cliente – no caso, a Receita Federal, o governo da República, o conjunto de todos os agentes fiscais do Brasil – talvez nem tenha percebido: era típico de Neil esconder a ironia e até o deboche no alarido do óbvio. O felino-mor é majestoso e poderoso e também o rei dos predadores. E o que há de mais predador para o cidadão e consumidor brasileiro do que o bafo do fisco na sua nuca? Essa é a marca do gênio: o leão do Imposto de Renda equivale como ideia perfeita ao garoto da Bombril, criado por seu discípulo Washington Olivetto.

Em Neil a imaginação do criador se aliava à indignação
do cidadão. Foto: Estadão

Mas o supera numa distinção que consagra a marca. Virou a Brahma que define a cerveja, mesmo a produzida pelo competidor, como no causo de Vicente Matheus agradecendo as Brahmas que a Antarctica lhe teria mandado. Ou o Gillette que deixou de ser um cidadão impresso na embalagem da lâmina de barbear para virar a gilete, substantivo comum feminino dos dicionários. Nem São Lucas, o publicano que se fez evangelista, conseguiu superar a fera no imaginário de todos quantos penam sob as garras dos implacáveis cobradores de deveres fiscais.
 
A diferença do criador do símbolo do soberano da selva que assusta todo brasileiro pagador em dia de suas obrigações é que Neil Ferreira era gente. Esta pode parecer uma obviedade mais ululante do que todas as outras que mestre Nélson Rodrigues, redator de sua predileção, imaginou ou descreveu. Mas não é: Neil não era gente apenas por pertencer ao reino animal e ser um mamífero dotado de capacidade de raciocínio e livre-arbítrio.Era gente no sentido mais comum que existe. Ele era simples, não apenas no sentido de um cara célebre que se destacou dos outros pelo enorme talento individual, mas tratava seus dessemelhantes como se fossem não apenas semelhantes, mas iguais.